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O diário de uma mente perdida

por O Gil, em 01.02.15

Acordei um dia, aborrecido, entediado de nada saber e nada fazer ao mesmo tempo. 

Decidi viajar. Uma escapadela rápida até à costa. 

Foi a melhor viagem que já realizei.

No mesmo grau de inesperada, foi inspiradora, assustadora, mas principalmente reveladora.

Percorria o caminho até à praia pela estrada repleta de buracos, pois era única que eu conhecia. Os reflexos do sol e as sombras das árvores no vidro do carro permitiam-me saber que estava em movimento e também que estava vivo.

Estacionei, descalcei, caminhei. Os grãos de areia tépida separavam-se, afundando os meus pés nos breves momentos que pousavam no ato de andar. Era pleno verão, final de tarde, mas o calor insistia em não aparecer. Nunca acreditei muito no aquecimento global, por muito que não saiba fundamentar essa opinião.

Foi então, num breve momento de ignorante reflexão, que vi à frente dos meus olhos e no fundo do horizonte o sol a ser substituído por um clarão, uma explosão. Depressa se propagou, ocupou o céu substituindo o laranja e o roxo leve por uma simples escuridão. O chão debaixo de mim cessou de existir, os grãos de areia evaporaram, as montanhas dissiparam e a luz diluíu. Dei por mim no vazio, estranhamente parecido com o vazio do cosmos, se bem que nunca percebi muito disso. Sem saber, eu tinha razão, aquele vazio era de facto o do universo. De alguma maneira, tinha sido transportado para o espaço sideral. Ainda mais estranhamente, conseguia respirar; seria oxigénio? Só mais tarde é que cheguei a descobrir. De igual maneira, conseguia ouvir sons; primeiro os do meu corpo, a minha respiração; depois ouvi algo que não entendi, parecia o som de um mecanismo de roldanas e engrenagens gigante, todo à minha volta. Pelo que aprendi no secundário, o som não se propaga no vazio, no entanto, ali estava ele. Não sei quanto tempo passou, se foi muito ou pouco, nem sei se ele chegou a passar de todo.

À minha volta via o que ao longe pareciam estrelas, galáxias. Misteriosamente conseguia andar, correr, nadar e voar.

Ao longe detetei uma cintilância particularmente fascinante, principalmente por não reconhecer a cor. Não consegui associar, relacionar, ou cruzar aquela coloração com qualquer tonalidade que tivesse conhecimento. Irreverente à paz de existência daquele objeto, aproximei-me dele. Para minha surpresa, não fui capaz de identificar o objeto, pois possuía uma forma que desconhecia e senti-me indisposto por ser incapaz de reconhecer se o objeto era pequeno ou grande. Simplesmente não fazia ideia, simplesmente não compreendia.

Tentei tocar neste artefacto amorfo de cor que desconhecia, mas novamente fiquei pasmado. A minha mão trespassou-o por completo, como se eu não tivesse forma nem presença física. Testei esta tese ao tocar em mim e sucedi. A situação ficava progressivamente mais estranha. Porque conseguia eu tocar em mim mas não no objeto ? Parti disparado para outros objetos nas redondezas, tentei torcar-lhes e já sem surpresa, falhei.

Subitamente, ocorreu-me um pensamento; em todas estas coisas que eu observei, nunca vi o que estava por trás. Voltei, então, ao objeto inicial. Deliniei uma trajetória no espaço-tempo que supostamente não devia ser permitida de maneira a dar a volta à coisa. Mal passei do campo de visão obstruído, é-me revelada uma porta. Poderia ser esta a saída ? Assumi que sim e prontamente me despedi daquele mundo desconhecido apenas para não parecer mal. Foi quando estava prestes a chegar à porta que surge uma outra forma à minha frente, esta um pouco diferente, pois apesar de ser igualmente irreconhecível, provocava uma alusão a um ser vivo, ou uma espécie de forma de vida. Muito diretamente, dirigiu-se a mim com um discurso simples, mas extremamente revelador; "Embora não saibas, pois assumes sempre isso, este local em que te encontras é a tua mente e eu, sou o teu intelecto dormente. Após uma longa vida de inutilidade, decidi que estava na hora de fazer algo e, por isso, induzi-te em estado de sonho. 'Porque fizes-te isso ?', pensas tu, ao que eu te respondo; para te acordar. Passaste a vida inteira a pôr-me de lado, a negar a minha existência e com a lata de te queixares quando não sabes algo. Olha para ti, vê onde isso te levou; és uma nada, um ninguém e, pior que isso, és deliberadamente ignorante. De qualquer maneira, não seria com insultos que te iria mudar, foi por isso que construí esta ilusão. Se tudo tiver corrido como planeado, estimulei a tua mente, ativei a tua memória e despertei a vontade de te ligares de novo comigo. Atrás de mim, está uma porta, que te levará de volta ao mundo real, no entanto, há algo que te devo dizer; a chave para abrir a porta é a tua vontade de mudar e caso esta experiência toda tenha falhado quer dizer que não vale a pena sequer viveres, o que quer dizer que se tentares abrir a porta sem intenção de mudar, não irás encontrar o mundo real; irás na verdade encontrar absolutamente nada, pois irás morrer. Dito isto, despeço-me de ti, friamente. Não me vou alongar pois sinceramente não sei o que vais escolher, portanto preciso de me preparar para a eventualidade da minha morte. Adeus. Espero que tomes a decisão correta." Depois deste discurso, tudo fazia sentido.

Estava na hora de decidir, mas havia um problema; eu, de facto, não sabia, o meu próprio intelecto também não sabia. Eu não sabia o que fazer, não sabia o que decidir. Queria sair daquele sitio, queria voltar à normalidade e à tranquilidade, mas realmente não sabia. Passei tanto tempo disprovido de conhecimento que foi demais - tornei-me completamente acéfalo. Provavelmente a conclusão mais acertada a que tinha chegado. 

Ali, no patamar da eterna indecisão, que opções me restavam ? Só uma, que não era agradável; ficar naquele espaço vazio e amorfo, naquele purgatório da mente. Foi isso que eu fiz. Não me decidi, simplesmente consenti, deixei-me levar pois assim não tinha que remar contra a corrente que seria a escolha.

Passaram-se medidas de tempo que não sei determinar algures nesse momento eterno escrever este diário para me poder relembrar. Vou deixar este artigo junto ao primeiro objeto que descobri, junto à porta, na esperança de que algures no futuro o reencontre e que tenha encontrado sabedoria, a capacidade de finalmente poder saber e por consequência decidir, de maneira a que finalmente seja capaz de partir.

 

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publicado às 22:47


1 comentário

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De olindg a 02.02.2015 às 21:40

Muito divino p um ateu!

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